Um dia noutra cultura




Foram os dias mais estranhos da minha vida! Tudo começou há duas semanas, quando estava na escola. Na minha turma, recebemos um menino novo, o Xiang, de nacionalidade chinesa. Tem a minha idade, 10 anos, e mudara-se recentemente para Portugal com os seus pais, para abrirem o seu próprio negócio. Sempre fui conhecido por ser o mais reguila da minha turma, fama que me atribuía algum prestígio e, por isso, gostava muito de chamar a atenção dos meus colegas e professores. Afinal de contas, eu era conhecido como: “Lucas, o reguila”. 



Xiang era um menino muito diferente. A sua cor amarelada e os seus olhos rasgados faziam-me imaginar que éramos de mundos diferentes. Enquanto nós brincávamos às apanhadas e às escondidas no recreio, Xiang nem se aproximava, mantinha-se distante, olhar inseguro e triste. Durante as aulas mal se ouvia a sua voz, a menos que a professora lhe fizesse alguma pergunta e, quando assim acontecia, Xiang tentava explicar-se na nossa língua, com alguma dificuldade e com um sotaque engraçado.



Certo dia, na hora do almoço, reparámos na forma esquisita como que ele comia. Enquanto usávamos o garfo e a faca para comer o delicioso arroz de marisco que a Dona Graciete fazia todas as quartas-feiras, como era recomendado na ementa, ele fazia-o com uns fininhos pauzinhos de madeira:

- Olhem!! O Xiang é mesmo esquisito, nem sabe comer de garfo e faca. Será que ele pensa que os garfos são para pentear o cabelo? – disse eu muito divertido.

Todos os que estavam na mesa começaram a rir e eu senti-me o rei do humor; por isso, continuei a fazer troça dele durante os dias seguintes:

- Olá, Xiang! Empresta-me os teus pauzinhos para eu experimentar como é que se come com isso? – perguntei com ar de gozo e com alguma maldade.

- Sim, podes experimentar. É fácil – respondeu com amabilidade.

Foi então que me dirigi para a minha mesa e comecei a fazer de conta que tocava bateria no prato, até que acabei por partir os pauzinhos. Estava tão preocupado em fazer rir os outros meninos da minha turma, que nem quis saber o quão triste e envergonhado ficou o Xiang.



No dia seguinte, durante a aula de educação física, enquanto treinávamos as cambalhotas, decidi ir ao balneário buscar os sapatos do Xiang, a fim de imitar o seu jeito acanhado de andar para divertir os meus colegas. Era uma ideia genial mas, foi quando tudo começou. Assim que os calcei, um vento muito forte atingiu-me numa espécie de redemoinho que me fez voar durante breves instantes e, de repente, dei por mim no meio de uma cidade extremamente grande.



Ao mesmo tempo que me sentia assustado, estava deslumbrado com a magnífica paisagem que os meus olhos viam. Grandes montanhas cercavam a cidade, parecendo alcançar o céu. As casas enfeitavam as ruas com os seus telhados curvados, de entre elas erguiam-se enormes edifícios com leões de pedra a aguardar as entradas e dragões enrolados nas escadarias. Ao pé das fachadas das casas, muito coloridas, avistava-se algumas lanternas vermelhas, redondas e robustas. Estava completamente perdido, não sabia onde estava, nem o que tinha acontecido. Andei no meio daquela multidão, confuso, até que passei por uma vitrina e reparei em algo extraordinário: o meu reflexo não era o meu, mas o do Xiang, pelo menos a minha cara tinha-se transformado na dele. Fiquei aterrorizado. Só pensava que estava a sonhar e que rapidamente iria acordar na minha cama, com a minha cara de volta à normalidade. Todavia, por mais que me beliscasse, não acordava. 



Foi quando uma senhora se aproximou de mim e com um sorriso na cara disse:

- Bem-vindo Lucas, estava à tua espera.

- Quem é a senhora e como me conhece? – perguntei-lhe muito admirado.

- Sou a fada da interculturalidade e estava à espera que chegasses porque sei que te tens portado mal, ultimamente, com o teu colega de turma, o Xiang. É por isso que estás aqui, na pele dele, para experimentares um dia na sua cultura e no seu país. Assim, poderás compreender melhor os seus costumes e passares a ser bonzinho para ele, que nunca te fez mal – explicou-me a fada cuidadosamente.

- É verdade, tenho troçado do Xiang para ter piada em frente aos meus amigos e nem me apercebi que estava a ser tão mauzinho. Será que me pode explicar o que é a interculturalidade?

- A interculturalidade é a interação entre duas ou mais culturas diferentes. A tua cultura é a portuguesa e a do Xiang é a chinesa e, como tal, os vossos costumes e tradições são muito diferentes. Eu estou aqui para garantir o respeito pela diversidade de culturas, para que todos se possam respeitar, porque, apesar das diferentes culturas, somos todos iguais. Anda comigo conhecer a magnífica cidade de Hong Kong onde nasceu o Xiang – convidou a fada.



Como eu já estava com muita fome, a fada levou-me a um restaurante muito bonito. Assim que me sentei vieram-nos dar uns pauzinhos iguais àqueles que parti ao Xiang:

- Lucas, estes pauzinhos chamam-se hashis e são utilizados pelos chineses para eles comerem – explicou a fada.

- Mas por que é que eles não comem com garfo e faca? – quis saber.

- Isso acontece porque eles consideram que uma faca à mesa é muito “selvagem” e perigoso. Assim, a maioria das comidas já vêm preparadas em pedaços pequenos para que não seja necessário cortá-los e poderem ser comidos mais facilmente.

A fada escolheu-me um prato de comida muito saboroso e ensinou-me a pegar nos pauzinhos. Quando finalmente aprendi, achei uma maneira muito divertida de comer e quando dei por mim já tinha comido tudo. Ela explicou-me, também, que o arroz é o acompanhamento típico da china por ser uma fonte de hidratos de carbono, muito bons para a saúde.



Após ter comido tanta coisa boa, que nunca tinha provado, a fada convidou-me a participar numa festa que decorria ali perto. Quando lá chegámos, nem queria acreditar no que via: mesmo à minha frente estava um dragão gigante de boca aberta e dentes afiados, mas não se preocupem porque ele era feito de bambu e tecido. Com ele dançava e cantava uma enorme multidão.

- Lucas, aqui na China, o dragão é um animal lendário. Estas festas são muito antigas e serviam para chamar a chuva em tempos de seca – disse a fada.

- Que engraçado, em Portugal, não fazemos festas assim – respondi.

A fada incentivou-me a juntar à festa e, com muitas outras pessoas, segurei no dragão, controlando todos os seus movimentos. Nunca me tinha divertido tanto na vida. Até me esqueci que estava no corpo do Xiang.



- O dia ainda é uma criança, Lucas. Quero que vás comigo conhecer um pouco das diferentes religiões que aqui se praticam – disse a fada com entusiasmo.

- Em Portugal a nossa religião é o Cristianismo – intervim, curioso.

- Pois é, mas agora ficarás a conhecer outras religiões diferentes. Aqui na China, os chineses praticam várias religiões como o taoísmo, o confucionismo, o budismo, o islamismo e o cristianismo também.

- Uau, tanta coisa diferente. Gostava de conhecer as suas igrejas. São muito diferentes das nossas? – quis saber.

- Como não temos muito tempo para ver isso tudo, vou-te mostrar um templo budista, uma vez que o budismo é a religião com maior influência na China.

Quando chegámos, a fada explicou-me que aquele edifício era um Pagode. Parecia-me uma torre gigante com cinco telhados sobrepostos e uma antena em cima. Estava radiante com tudo aquilo. Então descobri, depois, que aquela antena no topo do Pagode chamava-se finial, podia ter várias formas, como, por exemplo, uma flor de lótus e funciona como um para-raios para proteger o Pagode da possível queda de raios.



Quando lá entrámos, havia uma enorme estátua dourada de um senhor de pernas cruzadas e com as mãos postas como se estivesse a rezar. Era o Buda, mestre religioso do budismo, aquele que grande parte da população chinesa venera. Foi muito engraçado ver aquelas diferenças todas. De facto, o Xiang vinha de uma cultura muito diferente da nossa e eu nunca devia ter troçado dele, aliás estava a aprender muitas coisas novas e engraçadas.



Um pouco mais à frente do templo, passámos por uma academia de artes marciais, onde todos os alunos repetiam, ao mesmo tempo e muito sincronizados, os movimentos ensinados pelo professor, a quem chamam de mestre:

- Por favor, fada, gostava muito de aprender o que eles estão a fazer – pedi-lhe.

- Então, terás que falar com o mestre e pedir-lhe – adiantou a fada.

- Mas como se eu não sei falar chinês? É muito difícil – disse preocupado.

- Não te esqueças que estás no corpo do Xiang – respondeu-me.

Aproximei-me do mestre e, muito assustado sem saber como iria falar naquela língua, perguntei-lhe se podia também aprender. Nesse preciso momento reparei que todas as palavras que pronunciei foram em chinês. Magnífico, pensei! Como foi que consegui? Era pura magia.

Com as orientações do mestre consegui aprender alguns passos de Kung Fu, mas tinha de ter muito tempo de treino para aprender todas as técnicas. Despedi-me do mestre e dos colegas, que me receberam com muita simpatia, e voltei para o pé da fada, que me esteve sempre a observar enquanto repetia tais movimentos.

- Gostei muito de te ver, Lucas! Estiveste muito bem. As artes marciais são as atividades desportivas mais populares aqui na China – explicou-me a fada.

- Em Portugal é o futebol – acrescentei.



Já tinha conhecido muitas coisas novas e, apesar de querer aprender mais e mais, estava curioso para voltar ao normal e regressar ao meu país, para que pudesse pedir desculpas ao Xiang e tornar-me seu amigo. Também queria mostrar-lhe a nossa cultura para que ele se sentisse mais à vontade e, também, aprendesse coisas novas.

- Fada, quando é que vou poder regressar a Portugal e ficar novamente com o meu corpo?

- Em breve, Lucas. Tenho mais coisas para te mostrar. – respondeu-me.

Como já estava muito cansado de andar, a fada usou os seus poderes e fez-nos voar pelo céu, sem que ninguém nos conseguisse ver. Foi então que reparei que a China é muito, muito grande mesmo e que daquela altura conseguia ver uma espécie de rua que nunca mais acabava:

- O que é aquilo? – perguntei, curioso.

- É a famosa muralha da China. Anda ver de perto.

Aterramos com muito cuidado na muralha. Era tão grande que nem conseguíamos ver onde acabava. Então a fada explicou-me:

- Esta é a Grande Muralha. É uma grande estrutura de arquitetura militar, construída ao longo de várias dinastias.

- É muito bonita, mas para que serve? – questionei.

- Esta muralha foi construída para defender o país dos ataques invasores, mas atualmente constitui um símbolo da China e uma muito apreciada atração turística – retorquiu.

- Isso deve ter levado muito tempo a ser construído e foi necessária muita mão-de-obra.

- Demorou quase 20 séculos a ser construída, mais precisamente, 1900 anos – respondeu a fada.

E acrescentou:

- Foram milhares de camponeses que a construíram, para que em troca não pagassem impostos. Contudo, devido às horas excessivas de trabalho, à má alimentação e também à exposição ao frio, muitos morriam. Os tijolos são feitos de barro aquecido e o forno ficava muito longe do muro, por isso traziam-nos em carroças. Foi uma construção muito difícil.

- Nem imagino como conseguiram fazê-lo – disse, muito admirado.

- Agora, anda comigo. Quero oferecer-te uma coisa para que nunca te esqueças desta experiência.



Voltamos novamente a voar pelos céus daquele país e paramos numa rua onde decorria um concerto. Aí, pude ouvir um pouco de música chinesa e conheci instrumentos que jamais tinha visto, alguns feitos de pele, abóbora, bambu, metal, pedra, madeira, seda e barro:



Toma, este é o meu presente para ti. É um tubo de bambu, um instrumento de sopro. É um dos instrumentos mais antigos e conhecidos da China. Com a sua música poderás viajar novamente pelas ruas da China e recordar-te de todas as aventuras que hoje viveste.

- Muito obrigado! Eu adoro música e tenho a certeza que esta viagem serviu-me de lição para nunca mais voltar a gozar com nenhuma pessoa, nem com outras culturas. Afinal, somos todos iguais, apesar de em cada país se partilharem conhecimentos, crenças, costumes e leis diferentes. Estou muito triste por ter sido mauzinho para o Xiang. Espero que ele esteja disposto a ser meu amigo. Nunca mais volta a acontecer.



Acabando de dizer isto, voltei a sentir aquela ventania enorme que mal me deixava respirar e que me dificultava a abrir os olhos. Comecei a rodopiar tanto até que, finalmente, o vento terminou. Consegui abrir os olhos e estava de regresso aos balneários da minha escola, com os sapatos do Xiang calçados. Retirei-os depressa e fui a correr para o espelho onde pude ver que o meu reflexo tinha voltado à normalidade. Era eu, o Lucas. Depressa regressei para junto dos meus colegas, que continuavam no exercício das cambalhotas. Parecia-me que todo aquele tempo em que estive naquela maravilhosa aventura na China, durou poucos minutos na realidade.



Foi então que notei o Xiang, encostado ao cesto de basquete, como de costume calado e tímido, à espera da sua vez para realizar o exercício. Fui ao seu encontro:

- Xiang, quero pedir-te desculpas por não te ter recebido de uma maneira correta na nossa turma. Quero que saibas que te acho um rapaz genial e que na tua cultura existem coisas muito giras e interessantes de conhecer. O que achas de irmos brincar, depois das aulas, para a minha casa para que eu te possa ensinar um pouco sobre a cultura portuguesa?

Um sorriso surgiu nos lábios de Xiang que, radiante, retorquiu:

- Isso é uma grande ideia. Gostava muito de poder ter um amigo aqui que me ajudasse a conhecer Portugal e que pudéssemos partilhar as nossas experiências e aventuras.

E foi assim que nos tornámos amigos inseparáveis e aprendemos muito um com o outro. Afinal, o grande ensinamento da fada da interculturalidade realizou-se em pleno.